quinta-feira, 22 de maio de 2014

O SONHO E A VISITAÇÃO

Neemias Félix*

“Quem não sonha morre.”

Também já disse essa frase várias vezes. Uma delas quatro anos atrás quando ousei dar uma palestra “motivacional” para alunos adultos de um curso noturno. Acho que me empolguei com as constantes afirmações dos neurolinguistas, que vivem a dar conselhos aqui e ali e, é claro, ganhar dinheiro para falar sobre tudo aquilo que as pessoas já sabem, gostam de ouvir, não põem nada em prática e continuam atrás da última novidade em termos de reprogramação mental. Empolgam-se por um momento, para uma semana depois se esquecerem de tudo que ouviram, e... até a próxima palestra.

Mas o assunto não é esse.  É este: sonhar, não como manifestação vaticinante ou profética, mas no sentido aqui de desejar, almejar, aspirar à realização de alguma coisa que está lá bem no fundo, no âmago do ser, é fundamental assim na nossa vida?

No que concerne à profissão e a todos os objetivos que queremos atingir neste mundo, debaixo do sol, sim. A questão aqui, que a minha cabeça de temperamento melancólico insiste em levantar, porém, não está circunscrita ao debaixo, mas ao acima do sol.

Dias atrás, meditabundo que estava, com a cabeça enfiada nessas lucubrações noturnas, como sói, aliás, aos melancólicos de muito meditar e pouco realizar, comecei a investigar os sonhos de personagens bíblicos famosos.  Que sonhos tiveram essas figuras que realizaram tão grandes portentos para atingir seus mais altos e sublimes objetivos? Tive uma surpresa! A resposta seca e simples é... nenhuns!

Comecemos por Abraão, o Pai da Fé. Com que sonhava esse homem quando estava em Ur, na Caldeia, antes de ser quase arrancado por Iavé e mandado para Canaã? Parece-me que... com nada!

Andemos um pouco mais e vamos encontrar Moisés. Colocado num cesto betumado para escapar à ira do faraó, ele acaba se transformando no príncipe do Egito. Mais tarde vamos vê-lo abandonando o palácio real. Aos quarenta, mata um egípcio e esconde o seu corpo na areia para defender um escravo. Depois, passa mais quarenta anos nas plagas montanhosas de Midiã. Que planos, que projetos tinha esse homem? Libertar o povo de Israel do jugo do Faraó? Nunca! Tanto é verdade que Deus teve de aparecer para ele numa sarça ardente e praticamente empurrá-lo, já aos oitenta anos, para a grande missão que veio a realizar mais tarde.

Querem mais? Que sonhos tinha Davi? Não me venham dizer que o menino ruivo , filho de Jessé, vivia pelas campinas, absorto em seus pensamentos, sonhando ardentemente ser rei de Israel. E Isaías, o grande profeta? Literalmente, no templo, contemplava. Mas isso era no Velho Testamento, dir-me-ão alguns. Adentremos então a casa de Maria. Sonhava ela ser a mãe do Salvador? Não me parece. Quais os sonhos dos apóstolos e dos discípulos? Pedro e André pescavam tranquilamente, Mateus coletava impostos, Lucas diagnosticava. Até que apareceu Jesus em suas vidas. A ordem do Mestre para eles não era “sonhem”, mas, simplesmente, “sigam-me”.

Quando Jesus morre, todos voltam à pacata vidinha de homens comuns, sem grandes projetos. Parecem pensar: “É, tudo foi muito bom, maravilhoso, lindo, mas... alguém precisa trabalhar nessa família.” Que sonhos, que planos tinham esses homens que, na ascensão, ainda perguntavam, meio abobalhados: “O Senhor vai restaurar o reino de Israel nesse meio-tempo?” E o interessante é que Jesus não mandou que se sentassem e burocraticamente planejassem os rumos da incipiente igreja primitiva. Nos dias de hoje e no lugar deles, talvez disséssemos: “Deixa conosco, Senhor. Vamos formar várias comissões, todo mundo planejando dentro de um cronograma rígido de trabalho. Criaremos departamentos, ministérios, nomearemos líderes e responsáveis e atingiremos tais e tais metas em tal e tal tempo...”

 Numa desprogramação absurda, contrária ao afã de fazer e realizar, Jesus usa palavras como esperar, ficar, não sair, até que fossem revestidos de poder. É Ele quem sonha, quem faz os planos, quem manda; os apóstolos apenas obedecem.

Termino com Paulo. Além de perseguir e levar presos os cristãos e cumprir farisaicamente a lei de Moisés, com que sonhava Paulo? Com nada.  É aí que ele vê o quanto Deus pode ser violento para realizar os Seus sonhos, a ponto de fazê-lo cair no chão da via e da alma. Nenhum plano, nenhum projeto dele, Paulo. No lugar deles, uma dúvida santa e fundamental: “Senhor, que queres que eu faça?”

Para quem quer viver acima do sol, não há sonhos, planos e projetos. O sonho, nesse caso, é menos importante do que a visitação, a epifania. Sim, vale mais a visitação do que o sonho. Bem diz e bendiz-nos o escritor de Provérbios: “Muitos são os planos do coração do homem, mas é o propósito do Senhor que permanece (Pv 19.21).”

Nessa altura desta, digamos, mais divagação do que reflexão, também me questionei: Devemos então abolir o sonho, o projeto, o planejamento? Não seria seguir a ideia inconsequente do “deixa a vida me levar” do compositor popular? A resposta é paradoxal: sim, desde que Vida esteja assim, com inicial maiúscula.

Se, pela nossa fraqueza, não soubermos ouvir a voz de Deus e tivermos de sonhar, que sonhemos os sonhos mais próximos dos Seus sonhos. O poderoso segredo dos homens e mulheres que Deus tem usado ao longo dos séculos não parece ser a habilidade de sonhar ou de fazer planos e projetos, mas a disposição, ainda que tímida às vezes, de obedecer.  A Ele, é claro.
                                                                                             
                                                                                *Neemias Félix não é teólogo.
                                                                                                   É apenas um cristão latino-americano

                                                                                                  que tenta viver os valores do Reino.