Neemias Félix*
“Quem não sonha morre.”
Também já disse essa frase várias vezes. Uma delas
quatro anos atrás quando ousei dar uma palestra “motivacional” para alunos
adultos de um curso noturno. Acho que me empolguei com as constantes afirmações
dos neurolinguistas, que vivem a dar conselhos aqui e ali e, é claro, ganhar
dinheiro para falar sobre tudo aquilo que as pessoas já sabem, gostam de ouvir,
não põem nada em prática e continuam atrás da última novidade em termos de reprogramação
mental. Empolgam-se por um momento, para uma semana depois se esquecerem de
tudo que ouviram, e... até a próxima palestra.
Mas o assunto não é esse. É este: sonhar, não como manifestação
vaticinante ou profética, mas no sentido aqui de desejar, almejar, aspirar à
realização de alguma coisa que está lá bem no fundo, no âmago do ser, é
fundamental assim na nossa vida?
No que concerne à profissão e a todos os objetivos
que queremos atingir neste mundo, debaixo
do sol, sim. A questão aqui, que a minha cabeça de temperamento melancólico
insiste em levantar, porém, não está circunscrita ao debaixo, mas ao acima do sol.
Dias atrás, meditabundo que estava, com a cabeça
enfiada nessas lucubrações noturnas, como sói, aliás, aos melancólicos de muito
meditar e pouco realizar, comecei a investigar os sonhos de personagens
bíblicos famosos. Que sonhos tiveram
essas figuras que realizaram tão grandes portentos para atingir seus mais altos
e sublimes objetivos? Tive uma surpresa! A resposta seca e simples é...
nenhuns!
Comecemos por Abraão, o Pai da Fé. Com que sonhava
esse homem quando estava em Ur, na Caldeia, antes de ser quase arrancado por
Iavé e mandado para Canaã? Parece-me que... com nada!
Andemos um pouco mais e vamos encontrar Moisés.
Colocado num cesto betumado para escapar à ira do faraó, ele acaba se
transformando no príncipe do Egito. Mais tarde vamos vê-lo abandonando o palácio
real. Aos quarenta, mata um egípcio e esconde o seu corpo na areia para
defender um escravo. Depois, passa mais quarenta anos nas plagas montanhosas de
Midiã. Que planos, que projetos tinha esse homem? Libertar o povo de Israel do
jugo do Faraó? Nunca! Tanto é verdade que Deus teve de aparecer para ele numa
sarça ardente e praticamente empurrá-lo, já aos oitenta anos, para a grande
missão que veio a realizar mais tarde.
Querem mais? Que sonhos tinha Davi? Não me venham
dizer que o menino ruivo , filho de Jessé, vivia pelas campinas, absorto em
seus pensamentos, sonhando ardentemente ser rei de Israel. E Isaías, o grande
profeta? Literalmente, no templo, contemplava. Mas isso era no Velho
Testamento, dir-me-ão alguns. Adentremos então a casa de Maria. Sonhava ela ser
a mãe do Salvador? Não me parece. Quais os sonhos dos apóstolos e dos
discípulos? Pedro e André pescavam tranquilamente, Mateus coletava impostos,
Lucas diagnosticava. Até que apareceu Jesus em suas vidas. A ordem do Mestre
para eles não era “sonhem”, mas, simplesmente, “sigam-me”.
Quando Jesus morre, todos voltam à pacata vidinha de
homens comuns, sem grandes projetos. Parecem pensar: “É, tudo foi muito bom,
maravilhoso, lindo, mas... alguém precisa trabalhar nessa família.” Que sonhos,
que planos tinham esses homens que, na ascensão, ainda perguntavam, meio
abobalhados: “O Senhor vai restaurar o reino de Israel nesse meio-tempo?” E o
interessante é que Jesus não mandou que se sentassem e burocraticamente
planejassem os rumos da incipiente igreja primitiva. Nos dias de hoje e no
lugar deles, talvez disséssemos: “Deixa conosco, Senhor. Vamos formar várias
comissões, todo mundo planejando dentro de um cronograma rígido de trabalho.
Criaremos departamentos, ministérios, nomearemos líderes e responsáveis e
atingiremos tais e tais metas em tal e tal tempo...”
Numa
desprogramação absurda, contrária ao afã de fazer e realizar, Jesus usa
palavras como esperar, ficar, não sair, até que fossem revestidos de poder. É Ele quem sonha, quem
faz os planos, quem manda; os apóstolos apenas obedecem.
Termino com Paulo. Além de perseguir e levar presos
os cristãos e cumprir farisaicamente a lei de Moisés, com que sonhava Paulo?
Com nada. É aí que ele vê o quanto Deus
pode ser violento para realizar os Seus sonhos, a ponto de fazê-lo cair no chão
da via e da alma. Nenhum plano, nenhum projeto dele, Paulo. No lugar deles, uma
dúvida santa e fundamental: “Senhor, que queres que eu faça?”
Para quem quer viver acima do sol, não há sonhos, planos e projetos. O sonho, nesse
caso, é menos importante do que a
visitação, a epifania. Sim, vale
mais a visitação do que o sonho. Bem diz e bendiz-nos o escritor de Provérbios:
“Muitos são os planos do coração do homem, mas é o propósito do Senhor que
permanece (Pv 19.21).”
Nessa altura desta, digamos, mais divagação do que
reflexão, também me questionei: Devemos então abolir o sonho, o projeto, o planejamento?
Não seria seguir a ideia inconsequente do “deixa a vida me levar” do compositor
popular? A resposta é paradoxal: sim, desde que Vida esteja assim, com inicial maiúscula.
Se, pela nossa fraqueza, não soubermos ouvir a voz de Deus e tivermos de sonhar,
que sonhemos os sonhos mais próximos dos Seus sonhos. O poderoso segredo dos
homens e mulheres que Deus tem usado ao longo dos séculos não parece ser a
habilidade de sonhar ou de fazer planos e projetos, mas a disposição, ainda que
tímida às vezes, de obedecer. A Ele, é
claro.
*Neemias Félix não é teólogo.
É apenas um cristão latino-americano
que tenta viver os valores do Reino.