Neemias Félix
Se há algo precioso na Constituição Brasileira, este
é o inciso VI do seu artigo 5º Ele trata da inviolabilidade da liberdade de
consciência, crença e culto. Nada mais democraticamente sagrado. As religiões
celebram esse direito e todos damos graças a Deus por viver num país com
princípios assim.
No entanto, as mesmas religiões que enaltecem esse
artigo, estranha e paradoxalmente nem sempre agem com o mesmo sentido de
liberdade em relação às pessoas, individualmente.
Para embasar meu raciocínio, volto aos dias da minha
infância e narro duas histórias que me marcaram profundamente.
Eu tinha uns cinco anos de idade e morava no bairro
Vila Nova, quando um garoto esbaforido e resfolegante chegou à casa da minha
mãe gritando pelos nomes de dois irmãos meus, Dita e Guerrinha, ambos
adolescentes, chamando-os para participar de um batismo incomum. Um casal
estava com um bebê à beira da morte e pedia a meus irmãos para serem padrinhos
da criança que estava morrendo, vítima de crupe, outro nome dado à difteria.
Acreditavam que a criança não iria para céu e sim para o limbo, um lugar inventado por Gregório, no século IV, para onde supostamente
iriam as crianças que morressem sem batismo. Lugar tão inexistente que o
próprio Papa Bento XVI, em 2005, numa reengenharia celestial, resolveu eliminar.
Aliás, é muito fácil eliminar algo que nunca existiu...
Por causa de crenças assim, entre outras
absurdamente antibíblicas, as religiões vão tornando o ser humano, criado por
Deus com tanta liberdade, uma espécie de títere, presa fácil de dogmas e
rótulos que ela vai arrastando pela vida afora, só se libertando realmente
quando se encontra verdadeiramente com Cristo, o Libertador por excelência!
Assim é que – entro agora na segunda história – também
vivi 32 anos de minha vida carregando um rótulo religioso que recebi sem meu
consentimento e do qual foi muito difícil me desvencilhar. Infelizmente minha
história é igual a de muitos outros, pressionados a viver, ad vitae, num nominalismo religioso insosso, acomodador e
improdutivo. Tudo porque desde a mais tenra idade foi-lhes impingido e impresso
um rótulo com o qual nunca concordaram. Embora essa marca tenha sido colocada
por pessoas piedosas, na maioria das vezes, e com a melhor das intenções, as
consequências são desastrosas. Se não, vejamos:
Sou filho de pais católicos nominais, ou seja, por
tradição apenas, não por convicção. Desses que vão ao templo para batizar os
filhos ou em casamentos e olhe lá. Assim, fui levado, no colo dos meus pais, à
pia batismal. Sem meu consentimento, é claro, fui batizado e rotulado:
católico! Comecei a perceber vagamente a gravidade disso quando me matricularam
na primeira série. Ao preencher a ficha, a funcionária perguntou: “Religião?” A
resposta demorou apenas um segundo: “Católica”. Na verdade, nem eu nem minha
irmã tínhamos noção do que era isso, mas era quase uma obrigação. Também não
sei o que seria dela se respondesse diferente, nem faço idéia.
Cresci e na escola tínhamos aulas de religião. É
claro que os estudos tinham por base as doutrinas católicas. Lembro-me de que
os colegas me perguntavam sobre já ter feito a “primeira comunhão”. Quando
respondia que não, eles torciam a cara num misto de surpresa e asco. Hoje
entendo que isso significava dizer: “Herege!”
Na adolescência comecei a analisar outras idéias a
respeito de religião e entrei num turbilhão: lia desde o esoterismo de Madame
Blavatski, Papus, passando por Kardec, Idries Shah e outros. Mais tarde, certo
interesse pelos evangélicos, principalmente os adventistas. O interessante é
que, mesmo discordando das doutrinas católicas, lá estava o rótulo, o estigma
recebido na infância. E as pressões, ora disfarçadas, ora explicitamente cruéis
dos amigos: “Na religião em que nasci vou morrer!” “Fora da Igreja não há
salvação.”
O tempo passou, veio o casamento. Como não pertencia
a nenhuma agremiação religiosa e, sob a pressão dos amigos do rótulo, que
sempre enfatizavam a importância de casar “na Igreja”, no “religioso”, lá estou
eu casando. Onde? Na igreja católica, é claro, onde mais?
Os filhos vêm e a força do rótulo continua. Lembra-se
da história do menino com crupe, na minha infância? Pois é, o filme se repete
na pressão dos parentes e amigos: “Não vai batizar a criança?” “Vai deixar o
menino morrer pagão?” “Queremos ser os padrinhos, hem!” E lá estou eu, mais uma
vez, sem nenhuma convicção, batizando o meu primogênito que, como eu, coitado, não
pediu para ser batizado.
Com o segundo filho, uma fuga. Como em Linhares
precisávamos fazer um cursinho de preparação, fomos orientados a fugir para a
Bahia. E foi assim que batizamos a nossa filha lá nos cafundós de Caravelas, no
meio do mato, literalmente, porque a coisa era mais fácil.
Pensam que a história acabou? Não. Convertido a
Cristo aos 32 anos, finalmente o batismo desejado, por imersão (uma
redundância, porque batismo já
significa imersão), com absoluta
consciência do que estava fazendo. Até aí tudo bem. Porém, por ser batizado no
meio batista, passei a fazer parte não apenas do Corpo de Cristo, mas também de
uma denominação religiosa, com todas as implicações que isso pode acarretar.
E elas não se fizeram esperar, com os novos e
inevitáveis rótulos: “crente”, “protestante”, “evangélico”... Sem falar no
olhar de reprovação dos “amigos”, para os quais passei a ser um vira-casaca,
alguém assim como um corintiano que “vira” são-paulino. Certa feita tive de
gastar duas boas horas para explicar a um primo da minha mulher por que eu
tinha “mudado de religião”. Nunca foi tão difícil explicar algo tão óbvio: que,
na verdade, eu nunca tivera religião nenhuma, já que carreguei apenas um rótulo
que me colocaram na mais tenra infância. Foi duro!
É duro também explicar, no chamado meio evangélico,
a que denominação você pertence, a que segmento específico você está filiado.
Afinal você é batista tradicional, renovado ou regular? Do sétimo ou do oitavo
dia? De que convenção, a Brasileira ou a Nacional? Crê no batismo com o
Espírito Santo? Sim ou não? “Pra mim você parece mais pentecostal.” “Aquele ali
não, é mais tradicional. Na verdade um ‘batistão’.” Rótulos, rótulos e rótulos.
Ufa!
O rótulo religioso causa generalizações perversas.
Ano passado fiquei indignado com uma manchete de um jornal do nosso estado:
“Evangélico estupra adolescente na Serra”. Em e-mail enviado ao diretor de
conteúdo, protestei contra a discriminação, perguntando, entre outras coisas, se
os jornalistas também identificam adeptos de outras religiões quando cometem
crimes. Ele se desculpou dizendo que eu estava “coberto de razão” e prometeu
tomar providências.
Não pude escapar do constrangimento causado por um
episódio que ficou conhecido como o “chute na santa”, quando um bispo da
“Empresa Universal” (o rótulo é meu) chutou a imagem da Aparecida na televisão.
No outro dia, tínhamos um culto programado na casa de amigos e parecia que mil
dedos apontavam para nós: “Estão vendo? Eles também são ‘evangélicos’, como o
cara que chutou a santa.” Como explicar que não tínhamos nada a ver com o tal
bispo, que não concordávamos com aquela ação estúpida e contraproducente? Mas o
rótulo “evangélico” às vezes faz descer todo mundo à vala comum.
Do mesmo modo, fico pensando no constrangimento dos
padres e fiéis católicos depois de mais uma denúncia de pedofilia. Como
explicar que nem todos os padres são assim? E os fiéis, que nada têm a ver com
esse grupo de mentes doentes e miseráveis? Mas o rótulo lá está, implacável e
acusador!
Concluo dizendo que não tenho a pretensão de
resolver o problema do rótulo religioso. Até porque é próprio do ser humano e
muitas vezes necessário organizar, ordenar, definir, classificar, etc. A
questão é difícil entre os cristãos, porque também não podemos deixar que
nossos filhos cresçam sem nenhuma instrução “religiosa”, por assim dizer. Mas
devíamos achar um modo melhor de instruí-los nas questões espirituais
essenciais e não tentar estigmatizá-los com rótulos religiosos, que têm importância
secundária, para não dizer nenhuma. A pregação e o ensino de Jesus eram graves,
porém libertários. Ele nunca se preocupou com tradições e placas e criticou
duramente os hipócritas, preocupados com a capa da “religião”. Sempre pregava a
Verdade, que era Ele mesmo, sua vida, seus valores, seu exemplo. Seus apóstolos
e discípulos nunca pregaram um ritualismo oco, de fachada. Eram conhecidos como
os “do caminho”, mas nunca se deram esse nome. Só mais tarde, em Antioquia,
eles “foram chamados cristãos” (At
11,26), certamente pela identificação com Cristo, mas não porque se
autodenominavam assim.
Essência, conteúdo e vida com Deus sempre foram e
sempre serão prioridade na avaliação e visão que Cristo tem de nós. Ponto
final.