sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Problema do Rótulo Religioso

 Neemias Félix

Se há algo precioso na Constituição Brasileira, este é o inciso VI do seu artigo 5º Ele trata da inviolabilidade da liberdade de consciência, crença e culto. Nada mais democraticamente sagrado. As religiões celebram esse direito e todos damos graças a Deus por viver num país com princípios assim.

No entanto, as mesmas religiões que enaltecem esse artigo, estranha e paradoxalmente nem sempre agem com o mesmo sentido de liberdade em relação às pessoas, individualmente.

Para embasar meu raciocínio, volto aos dias da minha infância e narro duas histórias que me marcaram profundamente.

Eu tinha uns cinco anos de idade e morava no bairro Vila Nova, quando um garoto esbaforido e resfolegante chegou à casa da minha mãe gritando pelos nomes de dois irmãos meus, Dita e Guerrinha, ambos adolescentes, chamando-os para participar de um batismo incomum. Um casal estava com um bebê à beira da morte e pedia a meus irmãos para serem padrinhos da criança que estava morrendo, vítima de crupe, outro nome dado à difteria. Acreditavam que a criança não iria para céu e sim para o limbo, um lugar inventado por Gregório, no século IV, para onde supostamente iriam as crianças que morressem sem batismo. Lugar tão inexistente que o próprio Papa Bento XVI, em 2005, numa reengenharia celestial, resolveu eliminar. Aliás, é muito fácil eliminar algo que nunca existiu...

Por causa de crenças assim, entre outras absurdamente antibíblicas, as religiões vão tornando o ser humano, criado por Deus com tanta liberdade, uma espécie de títere, presa fácil de dogmas e rótulos que ela vai arrastando pela vida afora, só se libertando realmente quando se encontra verdadeiramente com Cristo, o Libertador por excelência!

Assim é que – entro agora na segunda história – também vivi 32 anos de minha vida carregando um rótulo religioso que recebi sem meu consentimento e do qual foi muito difícil me desvencilhar. Infelizmente minha história é igual a de muitos outros, pressionados a viver, ad vitae, num nominalismo religioso insosso, acomodador e improdutivo. Tudo porque desde a mais tenra idade foi-lhes impingido e impresso um rótulo com o qual nunca concordaram. Embora essa marca tenha sido colocada por pessoas piedosas, na maioria das vezes, e com a melhor das intenções, as consequências são desastrosas. Se não, vejamos:

Sou filho de pais católicos nominais, ou seja, por tradição apenas, não por convicção. Desses que vão ao templo para batizar os filhos ou em casamentos e olhe lá. Assim, fui levado, no colo dos meus pais, à pia batismal. Sem meu consentimento, é claro, fui batizado e rotulado: católico! Comecei a perceber vagamente a gravidade disso quando me matricularam na primeira série. Ao preencher a ficha, a funcionária perguntou: “Religião?” A resposta demorou apenas um segundo: “Católica”. Na verdade, nem eu nem minha irmã tínhamos noção do que era isso, mas era quase uma obrigação. Também não sei o que seria dela se respondesse diferente, nem faço idéia.

Cresci e na escola tínhamos aulas de religião. É claro que os estudos tinham por base as doutrinas católicas. Lembro-me de que os colegas me perguntavam sobre já ter feito a “primeira comunhão”. Quando respondia que não, eles torciam a cara num misto de surpresa e asco. Hoje entendo que isso significava dizer: “Herege!”

Na adolescência comecei a analisar outras idéias a respeito de religião e entrei num turbilhão: lia desde o esoterismo de Madame Blavatski, Papus, passando por Kardec, Idries Shah e outros. Mais tarde, certo interesse pelos evangélicos, principalmente os adventistas. O interessante é que, mesmo discordando das doutrinas católicas, lá estava o rótulo, o estigma recebido na infância. E as pressões, ora disfarçadas, ora explicitamente cruéis dos amigos: “Na religião em que nasci vou morrer!” “Fora da Igreja não há salvação.”

O tempo passou, veio o casamento. Como não pertencia a nenhuma agremiação religiosa e, sob a pressão dos amigos do rótulo, que sempre enfatizavam a importância de casar “na Igreja”, no “religioso”, lá estou eu casando. Onde? Na igreja católica, é claro, onde mais?

Os filhos vêm e a força do rótulo continua. Lembra-se da história do menino com crupe, na minha infância? Pois é, o filme se repete na pressão dos parentes e amigos: “Não vai batizar a criança?” “Vai deixar o menino morrer pagão?” “Queremos ser os padrinhos, hem!” E lá estou eu, mais uma vez, sem nenhuma convicção, batizando o meu primogênito que, como eu, coitado, não pediu para ser batizado.

Com o segundo filho, uma fuga. Como em Linhares precisávamos fazer um cursinho de preparação, fomos orientados a fugir para a Bahia. E foi assim que batizamos a nossa filha lá nos cafundós de Caravelas, no meio do mato, literalmente, porque a coisa era mais fácil.

Pensam que a história acabou? Não. Convertido a Cristo aos 32 anos, finalmente o batismo desejado, por imersão (uma redundância, porque batismo já significa imersão), com absoluta consciência do que estava fazendo. Até aí tudo bem. Porém, por ser batizado no meio batista, passei a fazer parte não apenas do Corpo de Cristo, mas também de uma denominação religiosa, com todas as implicações que isso pode acarretar.

E elas não se fizeram esperar, com os novos e inevitáveis rótulos: “crente”, “protestante”, “evangélico”... Sem falar no olhar de reprovação dos “amigos”, para os quais passei a ser um vira-casaca, alguém assim como um corintiano que “vira” são-paulino. Certa feita tive de gastar duas boas horas para explicar a um primo da minha mulher por que eu tinha “mudado de religião”. Nunca foi tão difícil explicar algo tão óbvio: que, na verdade, eu nunca tivera religião nenhuma, já que carreguei apenas um rótulo que me colocaram na mais tenra infância. Foi duro!

É duro também explicar, no chamado meio evangélico, a que denominação você pertence, a que segmento específico você está filiado. Afinal você é batista tradicional, renovado ou regular? Do sétimo ou do oitavo dia? De que convenção, a Brasileira ou a Nacional? Crê no batismo com o Espírito Santo? Sim ou não? “Pra mim você parece mais pentecostal.” “Aquele ali não, é mais tradicional. Na verdade um ‘batistão’.” Rótulos, rótulos e rótulos. Ufa!

O rótulo religioso causa generalizações perversas. Ano passado fiquei indignado com uma manchete de um jornal do nosso estado: “Evangélico estupra adolescente na Serra”. Em e-mail enviado ao diretor de conteúdo, protestei contra a discriminação, perguntando, entre outras coisas, se os jornalistas também identificam adeptos de outras religiões quando cometem crimes. Ele se desculpou dizendo que eu estava “coberto de razão” e prometeu tomar providências.

Não pude escapar do constrangimento causado por um episódio que ficou conhecido como o “chute na santa”, quando um bispo da “Empresa Universal” (o rótulo é meu) chutou a imagem da Aparecida na televisão. No outro dia, tínhamos um culto programado na casa de amigos e parecia que mil dedos apontavam para nós: “Estão vendo? Eles também são ‘evangélicos’, como o cara que chutou a santa.” Como explicar que não tínhamos nada a ver com o tal bispo, que não concordávamos com aquela ação estúpida e contraproducente? Mas o rótulo “evangélico” às vezes faz descer todo mundo à vala comum.

Do mesmo modo, fico pensando no constrangimento dos padres e fiéis católicos depois de mais uma denúncia de pedofilia. Como explicar que nem todos os padres são assim? E os fiéis, que nada têm a ver com esse grupo de mentes doentes e miseráveis? Mas o rótulo lá está, implacável e acusador!

Concluo dizendo que não tenho a pretensão de resolver o problema do rótulo religioso. Até porque é próprio do ser humano e muitas vezes necessário organizar, ordenar, definir, classificar, etc. A questão é difícil entre os cristãos, porque também não podemos deixar que nossos filhos cresçam sem nenhuma instrução “religiosa”, por assim dizer. Mas devíamos achar um modo melhor de instruí-los nas questões espirituais essenciais e não tentar estigmatizá-los com rótulos religiosos, que têm importância secundária, para não dizer nenhuma. A pregação e o ensino de Jesus eram graves, porém libertários. Ele nunca se preocupou com tradições e placas e criticou duramente os hipócritas, preocupados com a capa da “religião”. Sempre pregava a Verdade, que era Ele mesmo, sua vida, seus valores, seu exemplo. Seus apóstolos e discípulos nunca pregaram um ritualismo oco, de fachada. Eram conhecidos como os “do caminho”, mas nunca se deram esse nome. Só mais tarde, em Antioquia, eles “foram chamados cristãos” (At 11,26), certamente pela identificação com Cristo, mas não porque se autodenominavam assim.

Essência, conteúdo e vida com Deus sempre foram e sempre serão prioridade na avaliação e visão que Cristo tem de nós. Ponto final.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

SURPRESAS DA MATEMÁTICA

 Neemias Félix

Creio que todo aluno reclama de certas matérias aparentemente desnecessárias que estuda na escola. Quantos já não fizeram a célebre pergunta que eu também fiz, principalmente nas aulas de Matemática: “Por que eu tenho que estudar isso? Será que vou precisar dessa matéria no futuro?”

Para quem pensa assim, e até como homenagem a meus antigos professores, como Nílton do Carmo Guerra e Eldo Valneide Vichi, entre outros, conto a seguinte história que me aconteceu quando já estava alguns anos longe dos bancos escolares.

Acostumado a jogar bilhar numa mesa com 10 bolas, sabia que a partida era ganha quando um dos jogadores fazia 28 pontos primeiro, já que o outro só poderia atingir 27 de um total de 55, soma de todos os pontos das bolas da mesa, numeradas de 1 a 10.

Um dia, porém, meu cunhado e eu, ao entrarmos no antigo “Bar do Rafael”, que ficava bem em frente ao campo do Industrial, deparamo-nos com uma mesa de sinuca enorme, que tinha não 10, mas 15 bolas. Doidos para jogar, pegamos afoitos nossos tacos.  Como o Rafael estava enfurnado nos fundos do bar procurando sei lá o que, ficamos ali, tacos em punho, com cara de abestalhados, tentando calcular a quantidade de pontos de todas aquelas 15 bolas.

Exercício chato e desnecessário, não é? Afinal, era só esperar o Rafael chegar e teríamos a resposta em um segundo.

E foi o que fizemos. A resposta do dono, depois da demora nos fundos do bar, foi rápida: “Ora, são 120 pontos. Ganha quem fizer 61 primeiro. Vocês não sabiam?” Como saber? Nunca tínhamos jogado bilhar num sinucão daquele tamanho, com tantas bolas! E não estávamos ali pra ficar fazendo esses cálculos tolos, ora essa!

Ao chegar a casa, corri direto ao grosso livro de Matemática, dos tempos do Eldo. E a fórmula estava lá, quietinha, mas eficaz: S=(a1+an)n:2. Na verdade, as 15 bolas do jogo de sinuca, formavam a famosa PA (progressão aritmética), em que o S representa a soma de todos os termos; a1, o primeiro termo, ou bola 1; an o último termo, ou bola 15; e n, o número de termos, também 15. Tudo isso dividido por 2, chega-se ao número 120, que esperamos tanto tempo para começar a jogar!  Um cálculo fácil e de poucos segundos, não?

Meditabundo, lá pela meia-noite fiquei então refletindo na importância da Matemática para a nossa vida prática. E constatei que mesmo aquilo que parece não ter nenhuma serventia no dia a dia pode nos surpreender a qualquer momento e evitar assim um esforço desnecessário, como o de ficar somando, bola por bola, todos os pontos das bolas de bilhar.

Esse fato tem mais de 30 anos e até hoje não esqueci a fórmula da soma dos termos de uma PA, o que para um professor de Português é uma grande vitória.

Os mais experientes têm razão: saber nunca é demais. E, realmente, não ocupa lugar.